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Auxílio emergencial foi uma das poucas coisas sensatas do governo Bolsonaro, diz economista britânico

O nome do economista britânico Guy Standing costuma ser associado ao termo “precariado” —a junção das palavras proletariado e precário— para se referir às relações distintas que essa crescente classe global tem com relação ao trabalho e ao Estado.

Esse grupo está abaixo do proletariado clássico, que encolhe, enquanto o precariado —que engloba indivíduos envolvidos em relações de trabalho instáveis e inseguras, cuja remuneração ocorre basicamente por dinheiro, sem benefícios. Na relação com o Estado, esse grupo se vê perdendo direitos, sejam eles sociais, culturais ou até políticos, define Standing.

O economista, ligado à Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) da Universidade de Londres e membro fundador e co-presidente honorário da ONG BIEN (Renda Básica Rede da Terra), defende que não é mais possível a sobrevivência da economia sem a renda básica.

Nesse sentido, ele vê o auxílio emergencial introduzido pelo governo Jair Bolsonaro como “uma das poucas coisas sensatas” feitas pelo governo federal. Para Standing, o benefício deveria ser transformado em uma política permanente, ainda que o valor inicial seja baixo.



O que é precariado? Pelo mundo, uma nova estrutura de classe tem se formado. Em termos de renda e poder, no topo, está uma pequena plutocracia de bilionários. Abaixo deles está uma elite, e então o assalariado, que consiste em pessoas com empregos assalariados, com licença remunerada, aposentadoria esperando por eles e por aí vai. Abaixo deles está um proletariado encolhendo, a velha classe operária manual. Abaixo deles está o precariado, que vem crescendo rapidamente, e depois dele uma subclasse, na chamada economia informal, vivendo com vícios e doenças sociais.

O precariado pode ser definido como uma combinação de três características. As pessoas nele têm relações de produção distintas, o que significa que têm que lidar com trabalho instável, inseguro e não têm identidade ocupacional ou uma narrativa clara para suas vidas. Eles também têm relações distintivas de distribuição, ou seja, têm que contar quase inteiramente com salário em dinheiro, sem acesso a benefícios não-salariais ou direitos estatais, e estão vivendo à beira de endividamento insustentável. Finalmente, e o mais importante, eles têm relações distintivas com o Estado, ou seja, estão perdendo direitos de cidadania —social, cultural, econômico, civil e político.

Essa terceira dimensão é a principal. Eu não gosto do termo “trabalho precário” porque a precariedade é sobre não ter direitos. Sempre existiu trabalho instável e inseguro. O ponto crucial é que o precariado parece com suplicantes, que têm que contar com pessoas que façam favores a eles, com figuras de autoridade para tomar decisões em seu favor ou não. Isso é indigno.

Mas como eu disse muitas vezes, o precariado não tem apenas vítimas. Eles não sofrem de falsa consciência, pensando que empregos são o caminho para felicidade e satisfação. Eles querem trabalhar, mas fazendo isso criativamente e em liberdade.

Por que essa classe segue crescendo? Quais são os efeitos possíveis e resultados desse crescimento e para onde ele nos leva como sociedade uma questão que o sr. colocou como crucial em seu livro?
O precariado ainda está crescendo porque estamos em um período de capitalismo rentista que está se tornando cada vez mais forte e mais ameaçador, acelerado pela crise financeira de 2007-2008 e pela pandemia da Covid-19. Acredito que ainda é dividido em três segmentos: atávicos, nostálgicos e progressistas. O primeiro grupo tende a apoiar políticos populistas e neofascistas que prometem trazer o ontem de volta. Eles apoiaram [Donald] Trump, Boris Johnson, Jair Bolsonaro e outros como eles. O segundo grupo é composto majoritariamente por migrantes onde eles estejam, sem direitos, destituídos de direitos. O terceiro grupo são aqueles que saíram de uma universidade e querem um futuro. Esse terceiro grupo está crescendo rápido.

Qual o impacto que trabalhos ligados à chamda “gig economy”, como motoristas de aplicativos, que tiveram uma expansão global nos últimos anos, têm no precariado? Eu prefiro chamar isso de capitalismo de plataforma. O processo de trabalho está crescendo rápido, com mais trabalho indireto, muito sendo feito fora de qualquer conceito de “emprego”. É parte da globalização e está ligado à uma revolução tecnológica em progresso.

Com a pandemia, algo mudou na trajetória que vinha sendo observada até 2020? A economia global, como eu chamo o capitalismo rentista no meu novo livro “The Corruption of Capitalism” [A corrupção do Capitalismo, em tradução livre], estava extremamente frágil antes da pandemia da Covid-19 atingir o mundo. O que ela tem nos mostrado é que nem à sociedade, nem àqueles no precariado ou perto dele faltam resiliência. E nós precisamos disso.

O sr. defende a renda básica há mais de três décadas, um tema que costuma ser visto como utopia. O sr. pode falar sobre suas experiência? Sim, eu acredito que uma renda básica é necessária por razões éticas, não apenas como forma de reduzir a pobreza e desigualdade, embora obviamente isso também seja importante. Eu estive envolvido em desenvolver e implementar pilotos e experimentos de rendas básicas, que estão descritos no meu livro Basic Income: And how we can make it happen [Renda básica: E como podemos fazê-la acontecer, em tradução livre]. As descobertas mais importantes incluem melhoria de saúde, mais trabalho e menos stress.

Como a renda básica pode ser instituída e salvar a economia de um país em crise? Nós precisamos, mais do que nunca, de um novo sistema de distribuição de renda. A menos que todo mundo tenha resiliência, nós todos seremos vulneráveis. Nós podemos bancar. Precisamos de reforma tributária e construir fundos de capitais que possam pagar pela renda básica.

O Brasil criou um auxílio emergencial de R$ 600 em 2020, reduzido posteriormente e criticado pelo custo fiscal. Como uma renda básica seria viável e sustentável aqui? Introduzir o auxílio emergencial foi uma das poucas coisas sensatas do governo Bolsonaro. Teve bons efeitos positivos. Mas precisa ser convertido em um esquema permanente. Todos aqueles a favor de uma renda básica devem perceber e dizer que a coisa mais importante, no momento, é ter o Estado “na direção certa”. Sim, o nível pode ser baixo a princípio, mas uma vez introduzido, o auxílio pode aumentar e ser integrado a outras políticas progressistas.

Como gerir um programa de renda básica em um contexto de crise fiscal? É preciso repensar fundamentalmente as políticas de macroeconomia no Brasil, com reforma tributária e mais impostos para os mais ricos e para os “maus” da ecologia. O dinheiro mobilizado precisa ser alocado para prover os brasileiros comuns com segurança básica. É uma questão de prioridades. É por isso que as preocupações do precariado se sobrepõem com a terrível crise ecológica. Nós precisamos ver um revival dos comuns, que é objeto de boa parte do meu trabalho atual.

No seu livro, “O precariado A nova classe perigosa” (Autêntica, 2013), o sr. escreve sobre pessoas vivendo com medo e insegurança e potencialmente furiosas. Esses sentimentos têm implicações políticas? Com certeza. A insegurança gera ressentimento e frustração. Mas como eu tenho dito, o precariado sofre de alienação, anomia, ansiedade e raiva. Quando os lockdowns e as tendências de isolamento da pandemia reduzirem, você vai ver um novo surto de raiva derramado nas ruas e praças. Essa raiva é justificada.

Há uma crise geral de representação diante do sistema político como o conhecemo. Como isso se aplica ao precariado? Por que as velhas esquerda e direita não falam com eles ou suas necessidades? Essa é sua melhor pergunta. A velha direita foi tomada pela extrema-direita, tipos neofascistas populistas e extremistas religiosos, silenciosamente apoiados por interesses financeiros. Eles jogam para os atavismos, como expliquei antes. Mas nem a direita, nem a velha esquerda entenderam ou atraem os progressistas do precariado. A esquerda precisa se transformar para ter uma base eleitoral forte de fato.

Como questões como raça e gênero entram nesta equação? Mulheres e minorias raciais são uma parte substancial do precariado, em todos os países. Mulheres e minorias, incluindo grupos com deficiência, são os que têm mais a ganhar com uma renda básica e novas formas de representação.

Como o sr. vê o cenário em um mundo pós-Covid? Há lugar para otimismo? Há espaço para otimismo, mas só se a nova geração de políticos e líderes de sindicatos e ONGs tentarem entender o precariado e articular o que eu chamo de “uma nova política do paraíso”, misturando preocupações ecológicas com um novo sistema de distribuição de renda.


RAIO-X

Guy Standing, 73, é economista e professor da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres. Tem doutorado pela Universidade de Cambridge e é fundador e co-presidente honorário da ONG BIEN (Renda Básica Rede da Terra).

Fonte: Folha

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