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Elza Soares provou que idade nada tem a ver com conservadorismo barato

Foi em meio a gargalhadas de deboche que Elza Gomes da Conceição foi recebida pelo auditório do “Calouros em Desfile”, apresentado pelo compositor Ary Barroso, na rádio Tupi, em 1953. Com o endosso do radialista, o público riu da menina, que vestia roupas simples como a sandália que ela próprio apelidou, anos depois, de “mamãe, tô na merda”.

“De que planeta você veio?”, perguntou Barroso à jovem, em tom de zombaria. “Venho do mesmo que o seu, o planeta Fome”, respondeu Elza, envergonhada, com lágrimas descendo sobre seu rosto.

A resposta inesperada fez o auditório diminuir as risadas e a jovem tomou coragem para enfim se apresentar —na esperança de conseguir o prêmio em dinheiro dado aos vencedores do programa, que, assim como vários outros da rádio e da televisão brasileira, fez sucesso rindo de pessoas pobres.

Ao som de “Lama”, de Paulo Marques e Aylce Chaves, o canto de Elza foi interrompido por Barroso, que abraçou a cantora e disse “senhoras e senhores, neste exato momento, nasce uma estrela”. O auditório aplaudiu de pé.

Dona de uma potência vocal única, marcada por rouquidão e tons rasgados que vão das notas mais graves às mais agudas, Elza Soares, morta nesta quinta, aos 91 anos, porém, passou a vida sem se ver como uma estrela. Um soldado raso ou uma trabalhadora da música era como ela preferia se definir, mesmo após ser considerada “a voz do milênio” pela rádio BBC de Londres, em 1999.

Mesmo consagrada há muitas décadas como um dos maiores nomes da música, Elza teve uma vida que em muito se assemelha àquela de milhares de brasileiros. Ela viveu anos às margens do povo.

Obrigada a se casar aos 12 anos, engravidou aos 13, enterrou dois filhos, que não resistiram à fome, foi agredida pelo marido e viveu por muito tempo à base da pura tentativa de sobrevivência.

Não é difícil, aliás, encontrar alusões a esses episódios nas letras de suas canções. Enxergando a música como um instrumento extrassensorial, Elza usou seu vozeirão para escancarar as dores e delícias que viveu, mesmo que isso muitas vezes tenha custado a ela mais frustração do que alegrias, levando a artista mais de uma vez a pensar em abandonar a carreira.

Mas como ela mesmo reconhecia, deixar de cantar seria loucura. Ela foi do samba, da bossa nova, do jazz, do rap, do tango, do samba-enredo, do funk carioca, do Carnaval, enfim, de todo o Brasil.

Viveu quase um século e, curiosamente, sempre se mostrou atual e pertencente a cada geração que chegava. Basta olhar para seus últimos anos de vida.

Na maré contrária à onda reacionária que invade o país, com o sucesso de movimentos juvenis conservadores, a cantora não só teve o prazer em defender as bandeiras que erguia desde a juventude —como antirracismo, feminismo e democracia—, como também se alinhou a pautas progressistas que só vieram a ganhar novo destaque no século 21, como os direitos civis da população LGBTQIA+.

Elza é a voz do milênio porque foi e, continua sendo, a que precisa ser ouvida. Não só por causa da sua maestria de técnica musical, que hipnotiza qualquer ouvido, mas também pela lucidez que evocava ao dizer o que dizia.

Em 2015, a cantora pediu, em “Mulher do Fim do Mundo”, para que a deixassem cantar até o fim —e, se antes Barroso a interrompeu, hoje o Brasil não só deixa, como pede bis.

Fonte: Folha

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