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Reforma tributária concentra renda sem melhorar nada para os mais pobres

A proposta de reforma do Imposto de Renda, em discussão na Câmara dos Deputados, pode aumentar a concentração de renda no país e não apresenta nenhuma melhoria para a população mais pobre, cuja vulnerabilidade se tornou ainda mais evidente na pandemia. Essa é a avaliação de especialistas em tributação e desigualdade que têm acompanhado de perto o vai e vem das propostas de reforma tributária na gestão Jair Bolsonaro (sem partido).

Na quarta-feira (4/8), a Câmara aprovou regime de urgência para o projeto (PL 2337/21). Com isso, o texto poderá ser colocado em votação no plenário nos próximos dias, como já havia sinalizado o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL).

Mas para o vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), a votação agora é precipitada. “A proposta do Imposto de Renda não está madura e suficientemente debatida com a sociedade para ser votada na primeira semana [de volta do recesso]”, disse ele na sexta-feira (30/7), durante evento virtual organizado pelo site Congresso em Foco.

Especialistas em tributação concordam com a avaliação do vice-presidente da Câmara e defendem que, da forma como está a proposta de reforma, após a apresentação de substitutivo pelo relator Celso Sabino (PSDB-PA), é melhor que ela não seja votada.

“Só dá para consertar [a atual proposta de reforma] se fizer uma mudança muito grande. Se for só para fazer ajuste paramétrico na proposta do governo ou colocar puxadinho, é melhor não votar”, afirma Bernard Appy, diretor do CCiF (Centro de Cidadania Fiscal).

“O texto substitutivo está totalmente desvirtuado e amplia a assimetria entre a tributação da renda do capital e do trabalho”, considera Débora Freire, professora do Cedeplar da UFMG (Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais).

Entenda qual era a proposta original de reforma do Imposto de Renda enviada pelo governo, como ela ficou após o substitutivo do relator e por que os economistas dizem que a reforma poderia ampliar a desigualdade no Brasil.

Antes da proposta do governo

Antes de o governo apresentar sua proposta de reforma tributária, duas outras propostas já tramitavam no Congresso Nacional: a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 45/2019, apresentada pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP) na Câmara, e a PEC 110/2019 do Senado, de autoria do ex-deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR).

As duas propostas tinham como objetivo unificar uma série de impostos de responsabilidade da União, de Estados e dos municípios, visando simplificar o sistema tributário brasileiro.

Debate da PEC 110 na CCJ do Senado em 2019
Legenda da foto, PEC 110, do Senado, propunha unificar nove tributos; PEC 45, da Câmara, queria unir cinco

Apesar de ambos os modelos estarem em discussão no Congresso desde 2019, o governo optou por não encampar nenhum deles e, em julho de 2020, enviou aos parlamentares uma proposta de reforma tributária própria.

Essa proposta seria dividida em quatro etapas: a primeira seria uma modernização da tributação sobre bens e serviços, com a unificação de alguns impostos, mas apenas no âmbito da União — sem Estados e municípios, como nas propostas da Câmara e do Senado.

A segunda etapa seria a transformação do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) num tributo seletivo; a terceira fase seria a revisão do Imposto de Renda; e a quarta etapa permitiria a regularização de impostos não recolhidos, uma espécie de “novo Refis” (sigla para Programa de Recuperação Fiscal).

Após a apresentação da primeira fase da reforma em julho de 2020, a proposta do governo recebeu uma série de críticas de setores que seriam afetados pela mudança.

Sem que houvesse qualquer avanço dessa primeira etapa no Congresso, a gestão Bolsonaro decidiu então mudar o foco e apresentar em junho deste ano sua proposta para a revisão do Imposto de Renda, de olho nas eleições de 2022.

‘Benesses para a classe média em ano eleitoral’

Quando era candidato à Presidência, Jair Bolsonaro prometeu que aumentaria a isenção do IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física) para até cinco salários mínimos — valor equivalente a R$ 5,5 mil em 2021. Mas isso acabou não acontecendo.

“A um ano da próxima eleição, o governo propôs o reajuste do limite de isenção para R$ 2,5 mil, de R$ 1,9 mil atualmente”, observa Rodrigo Orair, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

Manifestante vestida com cores do Brasil faz 'arminha' com as mãos
Legenda da foto, ‘Você está entregando mais de R$ 20 bilhões para a classe média, para ela gastar em ano de eleição’, diz Rodrigo Orair, pesquisador do Ipea

“Com isso, cerca de 6 milhões de brasileiros adultos que hoje recolhem um pouquinho de Imposto de Renda deixariam de recolher e passariam a ficar isentos”, explica.

Além disso, a proposta prevê uma reajuste das faixas da tabela progressiva do IRPF, o que fará com que aqueles que recebem mais de R$ 2,5 mil de renda tributável também paguem menos imposto, representando mais de R$ 20 bilhões a menos em arrecadação.

“Há uma motivação claramente eleitoral, com consequência econômicas: você está entregando mais de R$ 20 bilhões para a classe média, para ela gastar em ano de eleição”, diz Orair.

“É o que chamamos em economia de ‘ciclo político-eleitoral’: a ideia de que, às vésperas das eleições, se entrega benesses com um duplo efeito de beneficiar sua base eleitoral e também dar um estímulo à economia. Então esse é o carro-chefe da reforma, é a motivação prioritária do governo”, avalia o economista.

Compensando a ‘conta salgada’

Para compensar a “conta salgada” da perda estimada de mais de R$ 20 bilhões na arrecadação, o governo propôs uma mudança no modelo de desconto simplificado padrão do Imposto de Renda para Pessoas Físicas.

Atualmente, existem dois modelos de declaração do Imposto de Renda: a declaração completa e a simplificada. A completa é mais vantajosa para quem tem dependentes e muitas despesas dedutíveis com saúde e educação, pois esses itens reduzem a base de cálculo do imposto e a alíquota é então aplicada sobre essa base diminuída pelas deduções.

A simplificada é mais vantajosa para quem não tem dependentes, tem poucas despesas dedutíveis e somente uma fonte de renda. Nesse modelo, é aplicado um desconto padrão de 20% sobre a renda do contribuinte e a alíquota de imposto é aplicada sobre os 80% restantes.

Totem da Receita Federal
Legenda da foto, Para compensar perda de arrecadação, governo propôs mudança no desconto simplificado padrão do IRPF

“Para compensar parte da desoneração da classe média, o governo propôs restringir o desconto simplificado, que deixaria de existir para quem tem renda tributável acima de R$ 40 mil por ano [cerca de R$ 3.300 por mês]”, diz Orair.

Segundo ele, isso afetaria cerca de 7 milhões de pessoas. Mas, para parte delas, o reajuste das faixas da tabela do IR compensaria o fim do desconto simplificado.

Quem acabaria pagando mais imposto seriam cerca de 2 milhões de contribuintes, em geral assalariados, com renda acima de R$ 5,7 mil, que não têm deduções a declarar além das contribuições ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) descontadas em folha.

Mesmo com essa compensação, o efeito líquido das mudanças planejadas seria uma perda de arrecadação de R$ 14 bilhões, segundo o cálculo mais recente do relator.

Cobrando mais dos 2% mais ricos

“Até aqui, a reforma quase nada altera para 85% da população brasileira adulta, pois somos um país de renda média e muito desigual, então 85% da população adulta sequer recebe R$ 1,9 mil de rendimentos tributáveis [para ter que declarar Imposto de Renda]. Então é uma reforma que não afeta o grosso da população”, destaca o economista do Ipea. “Você reduz imposto para quem está entre os 85% até 97%. Empata entre 97% e 98% e cobra mais imposto dos 2% mais ricos — em particular, do milésimo mais rico.”

“Ou seja: na população como um todo, a reforma não afeta os mais pobres. Mas, entre os contribuintes, que são os 15% mais ricos do Brasil, a mudança é progressiva, pesando mais para o topo mais rico”, afirma o analista.

Casal com piloto de helicóptero
Legenda da foto, Uma forma de aumentar a tributação sobre 2% mais ricos é a taxação dos dividendos

A forma de aumentar a tributação sobre esses 2% mais ricos seria uma ampliação da taxação sobre a renda do capital na pessoa física, com a volta da tributação dos dividendos, que foram isentos no Brasil desde 1995, sob pretexto de estimular o investimento.

“Na OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, grupo apelidado de ‘clube dos países ricos’], 34 dos 36 membros praticam a bitributação do lucro na empresa e dos dividendos na pessoa física. Só dois não fazem isso: Estônia e Letônia”, cita Orair.

Ele observa que o movimento global por uma maior tributação do topo ganhou espaço no pós-crise de 2008 e se fortaleceu com a pandemia, que explicitou a fratura da sociedade e o fato de que diferentes parcelas da população estão suscetíveis a riscos muito distintos.

“Essa segunda parte da reforma, portanto, tinha problemas de calibração, mas estava muito alinhada com as tendências internacionais”, considera Orair.

Mas então veio o substitutivo do relator.

Pressão dos lobbies e ‘descontão’ para as empresas

No papel, a carga tributária para a empresas no Brasil atualmente é de 34%, que é a soma de 25% de IRPJ (Imposto de Renda da Pessoa Jurídica) e 9% de CSLL (Contribuição Social sobre Lucro Líquido) — mas o percentual total é na prática menor, devido a uma série de isenções.

A proposta de reforma do governo previa reduzir o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica de 25% para 20%, mas ao mesmo tempo acabar com uma série de benefícios fiscais em vigor atualmente. Assim, o resultado seria uma tributação menor, mas sobre uma base tributável mais ampla.

Em resumo: o governo abriria mão de arrecadação ao beneficiar a classe média e as empresas, mas compensaria essas perdas ao tributar dividendos a uma alíquota de 20% e acabar com a dedutibilidade do JCP (Juros sobre Capital Próprio), uma outra forma de remuneração dos acionistas pelas empresas.

Na proposta do governo, a reforma seria fiscalmente neutra, o que significaria que não haveria perda nem ganho de arrecadação, terminaria tudo no zero a zero.

Mas, uma vez enviada ao Congresso, a proposta gerou descontentamento naqueles que seriam afetados por uma maior tributação, como investidores do mercado financeiro.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, passou a dizer então que a intenção do governo era apenas suscitar o debate. “Você dá aquela cutucada, balança a árvore, cai um pouco de coco”, disse Guedes, durante evento virtual. Em outra ocasião, empresários se referiram à reforma com um pacote de “maldades” da Receita, recebendo a promessa de Guedes de mudanças.

Ministro Paulo Guedes
Legenda da foto, ‘Você dá aquela cutucada, balança a árvore, cai um pouco de coco’: após proposta do governo desagradar empresas e o mercado financeiro, ministro passou a dizer que intenção era ‘suscitar o debate’

“Uma vez que a proposta entra no Congresso, o ministro da Economia tira o pé, deixa a reforma órfã e o relator recebe pressão de todos os lados dos lobbies”, avalia Orair.

Nesse cenário, o relator amplia em seu parecer a redução do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica, que na proposta do governo era de 5 pontos percentuais, de 25% para 20%, para 12,5 pontos percentuais, o que reduziria o Imposto de Renda das empresas a 12,5%.

Após fortes críticas, o relator criou algumas condicionantes para essa redução total de 12,5 pontos, que dependeria de aumentos da arrecadação neste e no próximo ano. Mas Orair avalia que esse ganho de arrecadação é quase certo, então a expectativa é de que a alíquota vá de fato a 12,5% até 2023.

Com isso, a perda de arrecadação de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica, que na proposta do governo seria de R$ 40 bilhões, passaria a quase R$ 100 bilhões. O relator sugere então uma série de compensações para tapar esse buraco, mas algumas delas são um tanto questionáveis, como a projeção de que a reforma gere um crescimento adicional do PIB (Produto Interno Bruto), que levaria a um ganho de arrecadação de R$ 10 bilhões, por exemplo.

Uma reforma que aumenta a desigualdade

“Um projeto que antes era neutro do ponto de vista fiscal, agora passa a ser negativo, representando uma redução de carga tributária. Há uma dupla desoneração: para a classe média e para a renda do capital”, observa Orair.

O pesquisador destaca que uma série de estudos realizados nos Estados Unidos, analisando a redução de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica durante o governo de Donald Trump, demonstram que a mudança não resultou em aumento significativo do investimento ou da geração de empregos naquele país.

Por outro lado, levou a um aumento da distribuição de dividendos e da recompra de ações pelas empresas, enriquecendo ainda mais os acionistas, o que amplia a desigualdade.

“A proposta apresentada pelo governo tinha problemas de calibragem, mas apontava na direção correta ao tributar dividendos, o que é bastante necessário, porque temos um sistema tributário muito regressivo”, considera Débora Freire, da UFMG. Segundo a economista, isso acontece porque 50% da carga tributária brasileira incide sobre o consumo. E a tributação de renda, que deveria ajudar a corrigir essa disparidade, representa uma parcela muito pequena da nossa carga tributária.

Além disso, alguns integrantes do topo de maior renda chegam a ter 90% de seus rendimentos isentos de tributação, em grande medida, devido à isenção de dividendos. Essa isenção também incentiva a “pejotização” dos profissionais de maior renda, que se tornam pessoas jurídicas para fugir da tributação maior que incide sobre os salários da maioria dos trabalhadores.

A proposta do relator, no entanto, desvirtuou o caráter progressivo da reforma apresentada pelo governo, ao estabelecer uma redução muito grande do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica, avalia a professora.

“Isso vai fazer com que a tributação sobre a renda do capital continue menor do que a tributação sobre a renda do trabalho”, afirma. “O que resulta em que o sistema tributário concentre renda, porque quem detém renda do capital é o topo da pirâmide distributiva.”

Uma solução que não entende o problema

Para Bernard Appy, do CCiF e um dos idealizadores da PEC 45, a reforma do Imposto de Renda está sendo feita sem uma compreensão adequada dos problemas do país.

Segundo ele, sob o modelo tributário atual, um empregado formal, um servidor público e um profissional “pejota” têm cargas tributárias muito distintas, de 40,1%, 27,5% e 13,6%, respectivamente. A proposta do relator aumentaria ainda mais essa distorção, ao reduzir a carga tributária para os “pejotas”, que hoje já é muito mais baixa que as demais.

“Não se entendeu direito o problema que se está tentando resolver na tributação da renda do trabalho. Qualquer mudança boa deveria fazer convergir o máximo possível a tributação do empregado formal, do servidor público e do profissional liberal que é ‘pejota'”, afirma.

No caso da renda do capital, ela tem quatro formas: lucro, juro, aluguel e ganho de capital (que é o lucro obtido a partir da venda de um bem).

Segundo Appy, a proposta de reforma do governo aumentava a tributação sobre o lucro de forma descalibrada, mas a tentativa do relator de consertar o problema reduzindo muito o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica resulta em perda de arrecadação de Imposto de Renda, num país que tributa muito consumo e folha de pagamentos, mas pouco a renda.

“Não faz sentido fazer uma mudança da tributação no Brasil para reduzir a tributação da renda e ter de compensá-la parcialmente com um aumento da tributação do consumo”, considera Appy.

“As pessoas ficam tentando resolver com puxadinho, em vez de fazer uma mudança estrutural que torne a tributação do Brasil mais homogênea, tanto para a renda do trabalho, como para renda do capital”, acrescenta o especialista em tributação. “Se é para perder bilhões de arrecadação na tributação de Imposto de Renda, não faz sentido. Não num país como o Brasil. É preciso entender os problemas para saber como resolvê-los.”

Fonte: BBC Brasil

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