O anúncio de saída da Uber Eats do serviço de delivery de restaurantes intensificou a disputa por mercado no setor, aquecido durante a pandemia.
A Uber Eats, que divulgou que encerrará a operação no segmento em 7 de março, era a segunda colocada no mercado, atrás do iFood e na frente da Rappi.
Em meio à briga entre as empresas, o receio de consumidores e donos de restaurantes agora é que a saída da Uber Eats da modalidade aumente a dominância das outras duas e resulte em aumento das taxas cobradas.
Em Minas Gerais, donos de restaurantes afirmam que foram surpreendidos com notificação da Rappi via email informando aumento de até 35% na taxa cobrada pelo aplicativo, cerca de dez dias após o anúncio da saída da Uber.
O reajuste, opcional e negociável, foi creditado pela empresa à alta inflação no país. Procurada, a Rappi não se manifestou até a publicação da reportagem.
A Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) afirmou que tem recebido reclamações de clientes sobre o aumento de taxas de aplicativos. As taxas são negociadas em contrato direto com os restaurantes e as empresas, e por isso podem variar de acordo com a região, a empresa e a parceria estabelecida.
A ANR (Associação Nacional de Restaurantes) também afirmou que “tem registrado um aumento de reclamações por parte de seus associados em relação às taxas praticadas por aplicativos de delivery.”
A entidade diz que é contrária ao aumento nas cobranças, especialmente no momento atual, em que os estabelecimentos ainda se recuperam da queda na receita causada pela pandemia e passaram a utilizar o delivery como um dos principais canais de vendas.
Uma pesquisa realizada para a associação pela consultoria Galunion e pelo IFB (Instituto Food Service Brasil) em novembro mostrou que 22% dos restaurantes já trabalham exclusivamente com o delivery como canal de venda, aumento de 11% em relação ao observado em agosto do mesmo ano. Esses empresários seriam particularmente suscetíveis ao crescimento nas taxas cobradas.
Segundo o iFood, não houve reajuste feito pela empresa nas taxas de entrega e de serviços aos restaurantes após o anúncio da Uber. Em nota, a empresa ressalta que o restaurante parceiro “pode optar por utilizar sua frota própria, definindo assim o valor da entrega ao cliente”.
Rappi vai ao Cade contra o iFood
Na tentativa de ganhar espaço, a Rappi protocolou nesta segunda (14) nova manifestação no Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) contra os contratos de exclusividade do iFood com restaurantes.
Na manifestação dessa semana, a Rappi pede que o Cade impeça o iFood de cobrar multa rescisória dos restaurantes que desejem romper a exclusividade e contratar o serviço de outros concorrentes. No pedido, a Rappi alega que o iFood “se utiliza de multas contratuais de valores exorbitantes, como forma de impedir que o restaurante rescinda o contrato de exclusividade”.
O pedido se soma à medida preventiva já expedida pelo Cade , que proibiu o iFood de estabelecer novos contratos de exclusividade com restaurantes e bares e estabeleceu limite de um ano para renovação de contratos já existentes, até que o órgão profira a decisão final sobre o caso.
O principal argumento da Rappi para a ampliação do escopo da medida preventiva foi a saída da Uber Eats, que demonstraria “uma queda drástica da competitividade no mercado de delivery de comida”.
A empresa alega que a falta de condições de competitividade decorre da atuação “praticamente monopolista” do iFood, e torna-se “cada vez mais inequívoca e preocupante”.
Embora o iFood tenha divulgado que menos de 10% de sua carteira de estabelecimentos possua contratos de exclusividade, a Rappi e a Abrasel defendem que a porcentagem representa os restaurantes de maior relevância nas localidades onde o aplicativo opera.
A associação também entrou com ação no Cade contra um suposto monopólio do iFood, em 2020.
“O cliente entra na plataforma concorrente e não encontra os restaurantes mais famosos, os símbolos da cidade. Isso distorce a concorrência não só entre os aplicativos, mas também entre os próprios restaurantes”, diz Paulo Solmucci, presidente da Abrasel.
A Rappi ressaltou que as condições adversas para competidores fizeram com que a Uber Eats saísse do mercado de delivery de comida, ainda que em meio ao intenso crescimento do setor experimentado durante a pandemia.
“Mesmo em um momento de expansão vertiginosa do mercado, players altamente competitivos e com nome consolidado não conseguiram se fixar no setor. Reitera-se: o Uber Eats não é um pequeno aplicativo de atuação regional e que apresenta dificuldades financeiras. É uma empresa de atuação global com valor de mercado de mais de US$ 70 bilhões que, ainda assim, no conseguiu fazer frente ao poder de mercado do iFood.”
O Uber Eats não é um pequeno aplicativo de atuação regional e que apresenta dificuldades financeiras. É uma empresa de atuação global com valor de mercado de mais de US$ 70 bilhões que, ainda assim, no conseguiu fazer frente ao poder de mercado do iFood. Rappi
Representação jurídica da Rappi, na petição ao Cade
A Uber chegou a entrar com representação em fevereiro de 2021 para ingressar como terceira parte interessada no processo aberto pela Rappi contra o iFood no Cade. À época, alegou que o concorrente teria cláusulas de exclusividade vigentes com mais da metade (55%) dos restaurantes Top 100 do país e com 6 das 10 maiores pizzarias de São Paulo.
Procurado, o iFood disse que não comenta casos em andamento. Em nota, a empresa afirmou que o mercado de delivery online “segue em constante evolução, com entrada frequente de novos competidores e surgimento de novos modelos de negócio”.
A empresa disse ainda que suas políticas comerciais “estão em estrita conformidade com a legislação concorrencial” e que seguirá cooperando com as autoridades acerca do tema.
Apps de delivery menores buscam se diferenciar para sobreviver
Entre a mais de uma dezena de aplicativos menores e mais novos que disputam as entregas de refeições e compras de supermercado com as gigantes iFood e Rappi, o consenso é de que a saída da Uber Eats intensificará a concentração de mercado.
Para esse grupo, a única forma de sobrevivência nesse novo cenário é buscar diferenciais.
O Ceopag, por exemplo, possui um sistema de franquias locais e assinatura mensal com foco em cidades do interior e, com isso, diz superar o iFood onde ele não consegue chegar. Atualmente, o app possui mais de 1 milhão de usuários em 22 estados e 210 municípios.
“Competir com o líder de mercado sem as mesmas condições não faria sentido. Mas, com um modelo de negócio diferenciado como o nosso, surge um mundo de oportunidades. Há espaço para todos”, diz Kawel Lotti, fundador do grupo Ceopag.
A penetração nos mercados interioranos também é o foco da Quero Delivery, que surgiu há quatro anos no interior de Sergipe e atende 180 cidades em 14 estados, sobretudo no Nordeste. Segundo Miguel Neto, fundador do app, 1,1 milhão de entregas são feitas ao mês através da ferramenta.
“Queremos desenvolver os pequenos e médios negócios do interior. Esse é um mercado totalmente diferente das capitais, onde os grandes apps atuam. Muitos clientes no interior preferem pagar com dinheiro, por exemplo. E entregamos de tudo, até botijão de gás.”
No interior paulista, em Ribeirão Preto, o Alfred Delivery surgiu em 2017 também com a proposta de ser um “entrega-tudo”, como a Rappi, mas com foco nos municípios interioranos. Hoje, o app possui mais de 13 mil estabelecimentos cadastrados em 23 estados.
Quem segue focado no mercado acirrado das grandes capitais, como a Daki, busca conquistar o cliente com a agilidade nas entregas. A empresa possui 80 “dark stores”, espécie de supermercados no formato de depósitos ou centros de distribuição que, espalhados pela cidade, permitem a entrega de cerca de 1.500 itens pedidos online em aproximadamente 15 minutos, segundo o fundador, Rafael Vasto.
“É um modelo muito diferente do oferecido pelos aplicativos de marketplace, em que o comprador vai rodar o hipermercado, não achar itens, se desencontrar do motoboy. Temos pessoal treinado e modelo dedicado ao online.”
As grandes redes varejistas também estão de olho nesse mercado. Durante a pandemia, a Magazine Luiza adquiriu os apps AiQFome, ToNoLucro, GrandChef e Plus Delivery. A B2W, dona da Americanas, também comprou a plataforma de delivery Shipp.
Para a Abrasel, aplicativos comprados por grandes redes de varejo podem movimentar o mercado em breve, pois já possuem alto número de clientes pessoas físicas e soluções de logística de escala.
Futuro do mercado
Cristina Souza, diretora executiva da Gouvêa Foodservice, aponta que a necessidade de investimento em tecnologia para que novos entrantes façam frente a qualidade do serviço e poder de mercado do iFood e da colombiana Rappi, após a saída da Uber, é gigantesca.
Por isso, as concorrentes têm optado por nichos especifícos —além do foco no interior e tempo da entrega, novos eixos que estão sendo explorados são as refeições que atendem a dietas específicas, como a vegana.
“Tem que entrar jogando um jogo forte e trazer grandes vantagens. É como lançar um concorrente para o Whatsapp hoje. O cliente está acostumado com o serviço, com aquela qualidade, tempo de espera. Tem que ser incrível para conquistar esse cliente”, diz Souza.
“O iFood, por sua vez, foi um benchmarking inegável de sucesso, inclusive na pandemia. Mas está atingindo um ponto de maturação do negócio em que é necessário democratizar suas soluções. Nenhuma empresa quer ser a líder de mercado e não ser a mais querida, bem quista pelo público e pelo mercado”.
A consultora aponta que donos de restaurantes têm reclamado da queda no compartilhamento de dados sobre o cliente pelo iFood. “A empresa não compartilha os dados de modo que os donos de restaurantes possam de fato dirigir seus negócios, como acontecia no passado. De certa forma, isso não é bem avaliado pelos empresários”.
Especialistas apostam que o amadurecimento do mercado de delivery no país passa pela interiorização dos serviços e a desburocratização da oferta de opções a restaurantes. Uma solução frequentemente citada é a implementação do open delivery, que unificará em um software todas opções de entrega.
“Hoje, o restaurante geralmente trabalha com o aplicativo líder, um dos vices líderes e seu sistema próprio de entrega. Ele não vai adotar outro, porque seria mais um canal para gerir. Com o open delivery, uma só tela receberá os pedidos de todos aplicativos. Isso estimula a concorrência e a melhoria dos serviços. Somos contra qualquer exclusividade, seja de quem for”, diz Solmucci, da Abrasel.
Fonte: Folha