Logo depois de participar de uma passeata em prol das cotas raciais, em 2002, Luana Ozemela topou com um artigo de um economista. No texto, ele desfiava uma série de argumentos contra o programa de inclusão, usando números e justificativas que ela não entendeu bem. O episódio desencadeou o que seria uma carreira na Economia e na luta por equidade racial. “Naquele momento, eu disse: ‘Preciso dominar a linguagem econômica para criar uma narrativa mais convincente’. Não só gritar do lado de fora da sala de reunião, mas entrar, sentar e usar os argumentos dentro dessa sala”, afirma.
Com um PhD na área, Ozemela batalha, hoje, para disseminar sua expertise entre fundadores diversos e aumentar o número de investidores negros. “É incrível que a gente não tenha mais mulheres negras e homens negros tomando as decisões sobre os cheques”, diz. Para ela, o setor evoluiu, apesar da falta de políticas públicas voltadas a melhorar a disparidade histórica. Aos postulantes a empreendedor, ela recomenda focar na rentabilidade do negócio e não desistir no primeiro “não”. Na entrevista a seguir, Ozemela conta sua trajetória e analisa o ecossistema de inovação no Brasil.
Como começa a sua trajetória?
Eu posso contar minha história sob duas perspectivas. Uma é a do ativismo. Outra é a do dinheiro. Sou natural de Porto Alegre. Nasci em julho de 1980, em uma família de ativistas do movimento negro do Rio Grande do Sul. Meus pais são funcionários públicos aposentados. Nasci numa época em que ainda havia ditadura militar, em um contexto econômico de alta inflação. A questão racial e a do dinheiro sempre estiveram presentes como desafios para minha família, que era de classe média baixa. Meus pais sempre batalharam muito para que eu e meu irmão gêmeo pudéssemos ter educação de qualidade, na sua maioria pública. A época da minha adolescência também foi a do surgimento da internet, e os empregos do futuro iam nessa direção. Meu pai teve um grande insight e colocou eu e meu irmão em uma escola de informática, para um curso técnico. Fiz estágios em grandes empresas e, antes de me formar, tive a possibilidade de trabalhar na HP, em Porto Alegre.
Quanto tempo você ficou na HP?
Fiquei sete anos. Fui emancipada aos 19 anos para abrir uma empresa [na época, era necessário ter idade mínima de 21 anos para criar um CNPJ no RS] e prestar serviços para a HP. Essa empresa é a DIMA. Enquanto estava na HP, fiz um bacharelado em Economia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul [UFRGS] e comecei a me apaixonar cada vez mais. Sempre fui muito inclinada para o tema de políticas públicas, mas fiz meu trabalho de conclusão de curso sobre biotecnologia porque não havia quem me orientasse no tema racial.
Por que você saiu do Brasil?
Deixei o trabalho na HP quando consegui uma bolsa de estudos para fazer meu mestrado em desenvolvimento econômico no Reino Unido. Terminei o mestrado e fiz um estágio no Banco Interamericano de Desenvolvimento [BID] enquanto ainda estava em Southampton. Escrevi um artigo com um economista indígena que era o único que falava dos temas raciais e de gênero no BID em 2007. Eu era a única economista interseccional, que fala tanto de gênero como de etnia. Entendi que tinha de continuar trabalhando no BID, o maior banco de desenvolvimento da América Latina, que atuava em vários países, e onde existia uma divisão que focava no tema de gênero e raça. Me candidatei por quatro anos consecutivos para o programa de jovens profissionais. Enquanto tentava passar nesse processo, fiz o meu doutorado em Economia da discriminação racial no mercado de trabalho no Brasil. Entrei no BID, na divisão de gênero e diversidade, assim que defendi minha tese, e depois fui para [a divisão de] mercado de capitais e instituições financeiras. Fiquei lá sete anos e me orgulho muito de várias iniciativas emblemáticas.
Como você chegou ao Qatar?
Meu esposo estava no Qatar, eu engravidei e fui para lá trabalhar pelo BID. Percebi algumas oportunidades de mobilizar capital local para a América Latina. Saí do banco e registrei uma empresa – a primeira de uma mulher brasileira no centro financeiro do Qatar, uma subsidiária da DIMA. Comecei com um negócio focado em informática. Depois ampliei o escopo para prover serviços de consultoria na área de investimentos e educação empreendedora.

Como surgiram suas iniciativas voltadas a empreendedores negros?
Durante a pandemia, meu foco foi mobilizar capital para empreendedores negros. Investi como anjo em duas startups nesse período e comecei a criar um movimento para que existam mais investidores e investidoras negros. Eu mesma tive dificuldade de captar para um fundo. Tentei US$ 30 milhões para o Roots Funding [lançado no ano passado] e encontrei muitos desafios. Esse fundo foi uma das primeiras grandes iniciativas da DIMA em nível internacional para mobilizar capital para empreendedores negros em toda a América Latina. Fiz uma parceria com a DXA Invest, do Oscar Decotelli, a única gestora de pessoa negra no Brasil. Identificamos um número de empresas de pessoas negras que poderiam receber investimentos e saímos a captar. Encontramos desafios diversos. Primeiro, a questão dos estereótipos. Toda vez que queríamos fazer o pitch do fundo, nos passavam para a área de sustentabilidade. A gente demorava muito para acessar os gestores. As áreas de sustentabilidade se interessavam, mas não podiam usar os recursos para investir em capital de risco. O segundo grande desafio foi o fato de os gestores não nos conhecerem. Não fazíamos parte do circuito. Em terceiro lugar, as amarras que alguns investidores-âncora queriam colocar. Criamos um fundo do tipo blend finance: com capital de risco e um fundo não reembolsável, que serviria para apoiar na estruturação da carteira, pois precisamos realmente investir no due diligence. Esses investidores queriam entrar depois que já estivesse tudo estruturado, mas a gente precisava de pelo menos R$ 500 mil para isso.
Qual foi a solução?
Decidi pivotar a ideia do Roots. Em paralelo, nós recebemos um aporte pequeno do Grupo Carrefour para fazer o PreCapLab [iniciativa da DIMA que funciona como um laboratório para fundadores diversos]. São cerca de 50 mentores e instrutores do mercado brasileiro de investimentos e uma rede de 20 investidores, do Brasil e de fora. Das 20 empresas selecionadas na primeira turma, 18 se graduaram. Metade delas já recebeu investimentos ou está negociando rodadas. O PreCapLab foi uma maneira de a gente não parar. Em algum momento, no futuro próximo, o Roots vai acontecer. Por enquanto, desenvolvemos uma metodologia que consegue identificar bons negócios de pessoas diversas e apoiá-los. A próxima turma terá 40 empresas. Dessa forma, a gente vai contribuir para toda a indústria de investimento, que quer uma carteira de projetos diversa e minimamente diligenciada. Estamos reduzindo os custos e os tempos de análise de qualquer fundo. A metodologia mostrou resultados – notamos que não basta ter um fundo, é preciso também ter investidores negros.
Qual é o melhor jeito de fazer isso?
Essa é a razão de termos feito a Black Win [plataforma de investidoras-anjo negras]. Por que existem hoje tão poucas mulheres negras investindo? Vale também para homens negros. Eu vejo algumas grandes barreiras. A primeira é a do capital relacional. Há um grupo de afinidade em que essas pessoas são todas iguais e financiam elas mesmas porque já se conhecem. A segunda é que essa rede não permite acesso. Por exemplo, para se tornar investidor-anjo de clubes de formandos de universidades, um dos requisitos é ter atuado em um cargo de alta gestão, ser dono de uma empresa. As mulheres negras respondem por 0,4% dos cargos de alta liderança. Então, já há uma barreira de entrada. Nós, do lado de fora, tivemos pouca informação sobre o mercado de investimentos. A gente não cresceu falando sobre investimento na mesa de jantar, a gente cresceu falando sobre como superar a barreira do racismo. Em terceiro lugar, a gente não tem aquele capital financeiro disponível para começar a investir. Nosso capital é de poupança. Mulheres negras poupam para financiar a universidade dos filhos. Não se pode brincar com esse capital. A Black Win pretende endereçar alguns desses problemas. Primeiro, criando um grupo de afinidade de mulheres negras, mas que não seja fechado. A gente vai coinvestir com aliados, homens negros ou pessoas brancas. Tem um pilar de aprendizagem, de criar um hub sobre investimentos, gestão de portfólio e mentoria. A gente também vai ter um foco grande em deal sourcing, para identificar bons negócios. Outro pilar transversal a tudo isso é a nossa estratégia comunicacional. A gente quer realmente que as mulheres negras se vejam como investidoras.
Em que fase está a Black Win?
Nós lançamos uma página na web e o nosso manifesto. Temos uma rede de cerca de 20 mulheres. Agora estamos capturando leads de mulheres que querem se tornar Black Winners. A tradução literal é “ganhadeiras”, que é como as mulheres negras que compravam alforrias e faziam investimentos em patrimônio eram conhecidas no século 18.
Você acredita que, com o avanço da Black Win e do PreCapLab, conseguirá fazer o Roots funcionar como havia idealizado?
Não estou tão preocupada com o Roots. Estou mais focada em tentar fazer as rodadas da Black Win serem bem-sucedidas, para que façamos bons investimentos e em cinco anos comecemos a fazer saídas interessantes. São muitos investidores-anjo negros fazendo deals, e é isso que a gente precisa visibilizar primeiro. Segundo, medir essa capitalização e reinvestir esse capital em acordos maiores. Vejo a estratégia da Black até como uma estratégia melhor e que pode ser muito maior do que um fundo de US$ 30 milhões.

Você está trabalhando em outras iniciativas?
Essas já são uma mão cheia, e temos planos de abrir a segunda e a terceira turmas do PreCapLab. Sabemos que precisamos mobilizar capital em breve, e que precisamos de mais gestores ativos negros. Vou começar a advogar para acelerar esse número de gestores, dando a eles certificação e pequenos aportes, de pequenos fundos – estamos falando de R$ 5 milhões a R$ 10 milhões – para que possam ter um track record. Quero desenvolver um livro sobre diversidade na indústria de investimentos. Também penso no tema educacional, em treinar gestores de fundos tradicionais que querem fazer mais sobre a diversidade e não sabem como.
Você entende que o ecossistema, dominado por homens brancos heterossexuais, evoluiu?
A indústria de investimento avançou muito. Há dez anos, quando comecei a conversar sobre esse tema, ainda escutava de gestores que não existiam empreendimentos de tecnologia de pessoas negras. Hoje, eu acho que ninguém me falaria isso abertamente. As políticas de ESG [ambiental, social e governança] nos ajudaram muito, porque começaram a demandar mais os investimentos sociais privados. Hoje os investidores estão mais abertos e conscientes de que precisam fazer algo, mas não sabem exatamente o quê. Alguns talvez optem pelo que é mais fácil. Sabem o que fazer, têm recursos, mas escolhem o menos arriscado.
Como você enxerga o cenário do ecossistema de empreendedorismo e de inovação no Brasil hoje?
Eu vejo com bons olhos. É claro que, a cada quatro anos, chega um momento em que pode haver transição política. Mas acho que os meus anos trabalhando com governos da América Latina me blindaram um pouco. A gente sempre terá de navegar na instabilidade política e, para isso, precisa fortalecer o ecossistema de inovação em si. Seja com regulação, que proponha incentivos, estímulos, fomento da diversidade; seja por meio de políticas públicas que aloquem recursos para que esse ecossistema seja fortalecido; seja vinculando o ecossistema local aos globais. Esses três temas precisarão ser olhados com mais cuidado se a gente quiser passar por vários ciclos políticos e manter a contínua maturidade do ecossistema de inovação.
O que falta para o ecossistema?
Não vejo discussões com relação, por exemplo, à diversidade no ecossistema no que diz respeito a políticas públicas. Há poucos dados e poucas iniciativas de fomento às incubadoras e aceleradoras. O BNDES lançou recentemente uma chamada para financiamento de fundos blended capital, que é superinovador e positivo.
Quais são outros grandes desafios?
Um deles é o capital necessário para poder tirar ideias do papel. Muito desse capital inicial vem de recursos públicos. Se vem da iniciativa privada, é do tipo blended. Podemos também olhar para as universidades e ter a possibilidade de empresas privadas financiarem núcleos de estudo. Essa dinâmica sempre existiu em setores mais tradicionais. Precisamos ver isso em outras indústrias de base tecnológica que não sejam só vinculadas a exportações e agricultura, mas que venham fornecer soluções para outros setores-chave, como educação e saúde.
Que conselho você daria aos empreendedores hoje?
Muitos. Mas, se eu tivesse de elencar algum – obviamente, tudo depende do estágio de maturidade –, seria focar na rentabilidade do negócio. Eu sei que nós, empreendedores diversos, tendemos a primeiro pensar no impacto. É superimportante. Mas como conciliar melhor as prioridades e tentar se preparar para mostrar que o investidor vai ter rentabilidade? A gente já domina a linguagem de como transformar as nossas comunidades por meio de uma iniciativa. Os empreendedores negros tendem a subestimar seus valuations, até antecipando certas barreiras. Outra coisa é não desistir no primeiro “não”, pivotar mais. A gente recebeu muitos “nãos” com relação ao fundo. Muitos diziam: “Você tem uma iniciativa maravilhosa, mas não te conheço muito bem, acho que é muito arriscado”. Então, que esse tipo de resposta não faça a pessoa desistir daquela ideia ou de encontrar mentores e assessores que possam ajudar nessa jornada.
Fonte: Revista PEGN